Autores:
Lia Faria (Doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação da UERJ).
Leonardo Nolasco-Silva (Pós-doutorando em Educação, professor da Faculdade de Educação da UERJ. Bolsita CNPq).
“Tudo o que é sólido desmancha no ar”. A analogia proposta por Karl Marx no Manifesto Comunista nunca esteve tão atual e oportuna quanto agora, sobretudo quando voltamos nosso olhar para a Educação no Brasil.
Embora os dados oficiais revelem certa animação com o aumento de crianças matriculadas na educação formal, ainda estamos distantes de sermos um país de pessoas letradas, autônomas, politicamente alfabetizadas e culturalmente livres. O que vemos, por trás dos dados numéricos, são os vestígios de uma longa história anti-republicana a dialogar com o rótulo da modernidade que, como disse Habermas, não chegou para todos e nem sequer teve seu projeto concluído.
Ao recuperarmos o conceito de Educação Integral, por exemplo, vemos o quão distantes estamos da proposta de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, expoentes do pensamento educacional brasileiro, defensores de uma escola pública de qualidade que cumprisse seu papel civilizador, humanitário e, prioritariamente, republicano. Anísio (1959:79) espera:
[...] que a escola eduque, forme hábitos, forme atitudes, cultive aspirações, prepare realmente a criança para a sua civilização – esta civilização tão difícil por ser uma civilização técnica e industrial e ainda mais difícil e complexa por estar em mutação permanente.
Ainda que a leitura do trecho acima nos cause a impressão de uma defesa excessiva do aspecto instrumentalizador da escola – no sentido da formação de competências para o mercado – é inegável no autor sua. percepção de movimento, de transitoriedade, de historicidade que obrigaria a escola – e o educador – a reverem permanentemente as suas práticas e os seus métodos. A criança (in) formada numa Educação Integral não é moldada paraa civilização, mas é instigada a conhecer os ritos de uma civilização em constante mudança. Os hábitos estimulados pela escola dialogariam com as demandas da vida social e o sujeito a ser educado não é mero objeto das instituições sociais, mas sim conhecedor de seu funcionamento e de suas possibilidades de alternância. O próprio capitalismo, tão poderoso e longevo, já passou por diversas fases, exigindo dos indivíduos adaptação, capacidade de empreender e habilidade para conjugar interesses privados e coletivos, num misto de individualismo e cooperação que remete aos escritos durkheimeanos sobre a solidariedade orgânica[1]. A escola de Anísio Teixeira pretendia atender o indivíduo inteiro, completo, cônscio de seus deveres para com a sociedade, mas também sabedor de seus direitos. Assim,
A escola primária seria dividida em dois setores, o da instrução, propriamente dita, ou seja, da antiga escola de letras, e do da educação, propriamente dita, ou seja, da escola ativa. No setor instrução, manter-se-ia o trabalho convencional da classe, o ensino de leitura, escrita e aritmética e mais ciências físicas e sociais, e no setor educação – as atividades socializantes, a educação artística, o trabalho manual e as artes industriais e a educação física. (Teixeira: 1959:82)
O que devemos esperar, pois, da educação atual? Que ela desperte nas crianças e nos jovens a “consciência” da formação escolar para uma boa localização no mercado de trabalho? Que a escola seja vista como condição sine qua non para a integração do sujeito à sociedade? Ou que ela compreenda que o mercado ocupa “apenas” uma parcela da vida social, sendo o educando uma pessoa possuidora de um corpo, de uma filiação cultural e ideológica, de uma etnia, de um gênero, de uma trajetória singular e inalienável? Se optarmos por esta alternativa nos aproximaremos dos Pioneiros e entenderemos que os estudos culturais hoje em voga na Academia ainda se deparam com as incompletudes dos projetos educacionais da primeira metade do século XX. A História da Educação no Brasil não é feita de transformações somente, mas também de permanências.
Por que somos uma sociedade que resiste à educação integral?Qual o papel ocupado pelo “tempo escolar” nessa resistência? Não é de hoje que ouvimos falar e somos apresentados a projetos político-educacionais que defendam o ensino de oito horas diárias em substituição ao modelo de turnos. Essa proposta foi amplamente divulgada (e grandemente combatida) nos anos oitenta com a implantação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) no Rio de Janeiro e volta à pauta atual da cidade com o Projeto Escolas do Amanhãque, entre várias características, aposta na integralidade do tempo para diminuir as lacunas de aprendizado das crianças moradoras de territórios historicamente vulneráveis à violência.
Se os CIEPs surgem nos anos oitenta em meio aos conflitos políticos advindos do embate cultural entre chaguismo e brizolismo[2], as Escolas do Amanhã têm como cenário favorável a retomada pelo Estado dos territórios antes dominados pelo tráfico, através das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP):
Em torno de uma parceria que abrange a sociedade civil, famílias, comunidades, organizações sociais, empresariado e as Secretarias de Saúde, Segrurança Pública e Educação do Estado do Rio de Janeiro, o conceito de Bairro Educador, dessa maneira, apresenta uma perspectiva prospectiva que desafia as circunstâncias precárias das áreas onde essas 151 escolas [doAmanhã] estão inseridas e avançam para a realização de melhorias em seu entorno. (LUCAS, 2011:54)
Guardadas as muitas diferenças dos projetos citados, reconhecemos o diálogo entre eles e salientamos que as mudanças estruturais experimentadas nas últimas décadas – na economia, na cultura, no cenário político do Brasil – podem conferir ao atual projeto o apoio popular, político e empresarial que fora negado aos CIEPs naqueles anos oitenta.
Mas será que estamos falando de Educação Integral quando citamos as Escolas do Amanhã? Será que estamos confundindo a integralidade do tempo escolar com uma formação total? Sem respostas prévias, aventuramo-nos no debate que constrói hipóteses a serem investigadas.
A quem interessa manter as crianças e os jovens na escola por mais tempo? O que há por trás desse interesse? Por que temporalizar a escola ideal no “amanhã” se o que temos hoje é uma realidade que pede para ser entendida/considerada/transformada AGORA? A oferta de um ensino de tempo integral é válida somente para os grupos instalados em territórios vulneráveis à violência urbana? Qual é a grande diferença entre o projeto CIEP e o projeto Escolas do Amanhã? O que havia de tão errado no passado nesse modelo que fora hoje consertado? Foi consertado? Ou será que os erros de ontem também se desmancharam no ar?
Referências
FARIA, Lia. Chaguismo e Brizolismo: territorialidades políticas da escola fluminense. Rio de Janeiro: Quartet, 2011. (FARIA, 2011)
FONTES, Isis Gabriele de Oliveira. Educação Integral: um diálogo com o projeto dos CIEP’s. 2011. Monografia (Graduação) – Lecenciatura em Pedagogia, Instituto Superior La Salle-RJ, Niterói, 2011.
LUCAS, Sônia. Projeto Escolas do Amanhã: Possibilidades Multiculturais? 2011. 157f. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
TEIXEIRA, Anísio. Centro Educacional Carneiro Ribeiro. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 31, n.73, p. 78-84, jan./mar. 1959
[1] Durkheim acreditava que o que mantém a sociedade coesa é a necessidade que reconhecemos ter em relação ao outro. Nosso comportamento seria pautado nessa dependência mútua. Assim, agimos pensando na reação que nosso interlocutor terá e faremos o possível para que ele aprove a nossa atitude. Nas sociedades mais rudimentares essa dependência era “naturalmente percebida” (solidariedade mecânica). Com o advento do Capitalismo, contudo, precisamos reconstruir os vínculos de dependência por meio da divisão do trabalho social (solidariedade orgância). É a consciência de que dependemos uns dos outros na organização social que nos faz permanecer juntos, integrados, submetidos à regras e desfrutando de alguma previsibilidade. A Escola, segundo Durkheim, teria importante participação na internalização desta solidaridade nas crianças – os futuros adultos.
[2]FARIA, Lia. Chaguismo e Brizolismo: territorialidades políticas da escola fluminense. Rio de Janeiro: Quartet, 2011. (FARIA, 2011)
Artigo publicado originalmente no site de Leonel Brizola Neto. Disponível em: http://www.leonelbrizolaneto.com/trabalhismo/artigos/educacao-integral-de-ontem-e-do-amanha-o-que-sobrou-pro-hoje/?meuid_post=trabalhismo
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