Soldado.
Bolivariano. Socialista e antiimperialista. Assim se autodefinia o
presidente da Venezuela Hugo Chávez. Considerado um dos mais
polêmicos e importantes líderes da América Latina, um câncer
marcou sua batalha final, encerrando os 14 anos de sua permanência
no poder.
Chávez é visto
como o homem que transformou a história social e política da
Venezuela. Para os setores populares foi uma espécie de "justiceiro"
que chegou à Presidência para redistribuir a renda do petróleo,
antes privilégio de uma minoria. Para seus opositores foi o político
que dividiu o país e atentou contra a propriedade privada, a
liberdade de imprensa e a democracia.
Com uma
popularidade incomparável na história do país, o líder
venezuelano criou um vínculo emocional com seus seguidores que foi
além da política. Por alguns é visto como "pai",
"irmão", "amigo" ou "filho". Gritos de
"Chávez, eu te amo", costumavam acompanhar comícios e
atos públicos liderados pelo presidente.O projeto maior de Chávez,
a chamada "revolução bolivariana", moveu o tabuleiro da
política venezuelana à esquerda. Polêmico, inspirado no prócer
independentista Símon Bolívar, criticava em seus discursos as
causas que teriam levado o país - quinto maior exportador mundial de
petróleo - a manter a maioria da população na pobreza.
Para
Alberto Barrera, autor da biografia Chávez
sem uniforme,
o presidente estabeleceu "um carisma religioso e afetivo com
parte da população". Ele acrescenta que Chávez podia ser
comparado a um popstar.
"Ele quis
ser jogador de beisebol, mas não deu certo. Gostava de cantar, mas
desafinava. Tentou um golpe de Estado e fracassou, e por fim, chegou
à Presidência e fez uma revolução", disse um simpatizante.
História
Proveniente de
uma família humilde de origem camponesa e de professores primários,
Chávez nasceu em 1954, no povoado de Sabaneta, em Barinas no
noroeste venzuelano. Cresceu em um casebre, onde foi educado pela avó
materna. No Exército, fundou o Movimento Bolivariano Revolucionário
200, que se tornou o alicerce de sua carreira política.
Em fevereiro de
1992, o então tenente-coronel Chávez liderou um golpe de Estado
contra o governo de Carlos Andrés Perez. Fracassada a intentona,
Chávez foi preso.
Em 1999 foi
eleito presidente e promoveu uma Assembleia Constituinte que criou as
bases de seu projeto político. Ele estabeleceu uma política
nacionalista, atacou latifúndios e promoveu uma onda de
nacionalizações em setores estratégicos – petróleo, siderurgia,
telecomunicações, eletricidade e parte do setor alimentar.
Essas medidas
teriam assustado investimentos estrangeiros e empresários locais que
deixaram de apostar no desenvolvimento industrial do país por temor
ao "comunismo".
Ao promover
mudanças na Constituição, Chávez foi acusado de demagogia e
oportunismo. Para seus opositores, as alterações eram parte de um
plano para mantê-lo eternamente no poder.
Chávez foi
chamado de populista e autocrático, acusado de ameaçar a liberdade
de imprensa e de utilizar a máquina estatal para perseguir aqueles
que discordavam de sua "revolução".
Pobreza e economia
A estrutura
econômica herdada de governos anteriores na qual a atividade
produtiva se resumia praticamente à exploração de petróleo, se
manteve intacta na era Chávez. Não houve diversificação do campo
produtivo e o principal motor da economia continuou sendo o petróleo.
"Chávez
surgiu em uma Venezuela comandada por mais de 50 anos por uma elite
política e empresarial acomodada pela bonança petroleira." A
opinião é do historiador Miguel Tinker Salas, professor de História
Latino-americana da Pomona College, da Califórnia. "Chávez
canalizou a crise, que de outra forma, poderia ter provocado um
enfrentamento social", afirmou à BBC Brasil.
A criação das
missões (programas sociais) de saúde e educação inaugurou em 2003
a cooperação com Cuba – estabelecendo a assistência de médicos
e educadores em troca de petróleo. Essa aliança se tornou mais
tarde o pilar de sustentação do governo e da popularidade do
presidente.
"Antes de
Chávez, o único direito que nós, os pobres, tínhamos, eram as
balas (de repressão)", afirmou à BBC Brasil a dona de casa
Miriam Bolívar, enquanto aguardava notícias sobre a saúde do
presidente na Praça Bolívar, em Caracas, dias depois de sua última
cirurgia.
Na era Chávez,
a pobreza na Venezuela caiu mais de 20%, de acordo com a Cepal
(Comissão Econômica para América Latina e Caribe), e o país
passou a registrar a menor desigualdade entre ricos e pobres entre
nações latino-americanas, de acordo com relatório da ONU, com 0,41
no índice de Gini que mede o grau de desigualdade na distribuição
da renda domiciliar per capita entre os indivíduos de um país,
quanto mais próximo de zero menor a desigualdade.
Apesar de se
proclamar socialista, Chávez não conseguiu eliminar uma das maiores
mazelas econômicas que afetam principalmente a população de renda
mais baixa, a inflação. Com índices que chegam a 30%, a Venezuela
tem a maior inflação da América Latina. Seu governo também falhou
em não criar uma política econômica de longo prazo que fosse capaz
de evitar a recessão.
Além disso, o
presidente não conseguiu acabar com a corrupção na administração
pública nem reduzir os índices de criminalidade nas ruas.
Amor e ódio
Chávez foi um
líder polêmico e o sabia. Na Venezuela polarizada entre chavistas e
anti-chavistas, entre socialismo e capitalismo, elementos raciais e
de classe social também foram determinantes para incrementar o
"amor" e "ódio" em torno à sua liderança.
Seus opositores
acreditam que a polarização criada é maléfica para o país, pois
apenas um setor da sociedade – os "vermelhos" - teria
espaço. "Chávez atacou o velho sistema de exclusão social que
dominava a sociedade, mas em contrapartida desenvolveu um novo
sistema de exclusão política", afirmou Barrera.
A divisão entre
os venezuelanos se aprofundou durante a crise política de 2002-2003
que resultou do fracassado golpe de Estado contra Chávez.
A intensa
disputa se arrastou até 2004, quando Chávez saiu vitorioso nas
urnas, depois de um referendo sobre seu mandato.
Em 2007, ele
cancelou a concessão pública do canal privado RCTV - acusado de
apoiar o golpe - , desencadeando uma onda de protestos. Chávez
acusava os meios de comunicação privados de serem os porta-vozes da
oposição interna e do governo dos Estados Unidos. A saída do ar da
RCTV foi vista como um ataque à liberdade de imprensa.
A vitória no
referendo em 2009, que lhe permitiu reeleger-se sem limites de
mandatos, foi outro auge polêmico - que voltou a dividir a sociedade
entre o "sim" e "não".
Ex-aliada do
governo, a historiadora Margarita López Maya critica o centralismo
desenvolvido em torno da figura presidencial. "Em termos
históricos, foi o rei que tivemos na Venezuela. Foi como Luis 14."
Diplomacia
Amparado pelo
incremento dos preços do petróleo, Chávez fortaleceu a influência
de sua diplomacia no continente. "Ele deixa uma projeção
internacional nunca alcançada por outro líder venezuelano",
disse à BBC Brasil o analista político Luis Vicente León, da
consultoria Datanalisis.
Os Estados
Unidos viam com ressalvas a influência de Chávez em outros países
da América Latina. O presidente venezuelano costumava dar opiniões
sobre eleições em países vizinhos, apoiava abertamente candidatos
presidenciais e assinou multimilionários acordos de cooperação.
Chávez criou
novos mecanismos de integração regional, como Petrocaribe e Alba
(Alternativa Bolivariana para as Américas), orientados na venda de
petróleo a preços preferenciais, em troca do pagamento em moeda,
mercadorias ou serviços.
Crítico da
política "imperialista", Chávez desafiou a influência
americana na América Latina, tornando-se, ao lado de Fidel Castro, o
principal inimigo dos Estados Unidos na região. Defensor de um
"mundo multipolar", se aproximou de figuras como o ex-líbio
Muammar Gaddafi e o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad.
O estreitamento
das relações entre Caracas e Brasília teve como marco os dois
mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Neste período,
o fluxo comercial foi triplicado e a aliança política consolidada,
sobretudo para dirimir crises entre a Venezuela e o governo do
colombiano Álvaro Uribe.
Na Presidência,
Chávez foi um grande incentivador do chamado "eixo de
integração" entre Brasília, Caracas e Buenos Aires - no qual
contou com o apoio do ex-presidente Lula, no Brasil, e do casal
Kirchner, na Argentina.
Em 2012, Chávez
colheu parte dos frutos desses apoios ao ver seu país dentro do
bloco do Mercosul após uma manobra diplomática do Brasil e da
Argentina que neutralizou a oposição paraguaia a essa integração.
Chávez–dependência
Os venezuelanos
foram convocados às urnas em 17 eleições durante os mandatos de
Chávez. Ele saiu derrotado apenas uma vez, quando pretendeu reformar
33 artigos da Constituição. Reeleito em outubro de 2012, o câncer
impediu que assumisse seu terceiro mandato.
Placas, murais e
grafites espalhados por todo o país evocam seu rosto e suas frases.
Nas casas mais humildes, a imagem do "comandante" divide o
espaço com a foto das famílias nas paredes.
Em seu
testamento político, Chávez preparou a população para o que
viria: sua quarta cirurgia poderia ser a batalha final contra o
câncer. Antes de enfrentá-la, apontou a Nicolás Maduro,
vice-presidente e chanceler, como seu substituto na liderança da
"revolução bolivariana". Desde então, uma antiga idéia
defendida por ele recobrou vida entre seus seguidores: "Eu sou
um povo, todos somos Chávez".
*
Matéria disponível em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/03/130103_obituario_chavez_cj.shtml